Quando o velho Lucas se suicidou pulando do penhasco em direção ao mar, o filho do padeiro foi o único a ver a cena por completo. A morte foi um abalo na vila onde os moradores sempre souberam virar defunto na santa ordem cristã. Com cara sorridente e determinação, o velho correu desde a porta de casa até a última faixa de grama do penhasco, se tacando em direção a água num pulo que terminou em um barulho seco assim que o rosto precedeu todo o corpo no entrar em contato com as pedras da margem. Já soltando sangue, o velho tremeu de forma a parecer que havia algo para sair de dentro dele durante uns vinte segundos até terminar sem vida. A água chegou em seguida e o puxou em direção ao fundo, fazendo-o boiar de barriga para cima no mar grande e azul. Em quatro minutos o penhasco já estava lotado de moradores a lamentarem em um som que se ouvia homogêneo à distância, um coral de tonalidade feminina. O menino Carlos estava sentado suficientemente longe para que o corpo do velho, na sua visão, fosse da altura de um dedo mínimo e a multidão se espalhasse pela margem mais ou menos na área de sua mão esticada com os dedos bem abertos.
Por toda a infância até a mais enrugada velhice, o menino sentado se lembrou da imagem do homem sendo levado pelo grande mar azul após um pulo certeiro em direção as pedras da margem. Por algum motivo sentia-se feliz com a imagem do velho Lucas na água, boiando como se fosse uma lasca de barco solta, mesmo que na memória de qualquer alma abrigasse um episódio de tragédia enterrado.
Antes do dia do acontecido, tinha indagado à mãe para onde haveria de acabar tanto mar e a resposta foi “não sei”. Ao saber que depois de desajeitadas tentativas não foi possível localizar o corpo, seu primeiro pensamento foi a curiosidade sobre a sorte de ser levado eternamente para onde nem a mãe havia de conhecer.
Carlos tinha os seus nove anos e desde os quatro já tinha aprendido a nadar por conta própria naquele mar. Descia até a água na trilha esculpida na encosta pelos passos daqueles que ao longo dos anos foram se esquivando dentre o topo até as pedras para qualquer que fosse o contato com as marés. Pescadores, viajantes, comerciantes e fugitivos; para todos a trilha de terra era única, e não era difícil ver pescadores já acostumados ainda por horas, passo a passo com atenção, carregando seus pequenos barcos juntos.
Nadava para além das ondas e boiava com o rosto olhando no alto, tentando esquivar da vista o sol forte que fazia pontos pretos quando piscava. Ás vezes fechava os olhos e imaginava não ter mais vida, estar morto tal qual o velho Lucas, tendo todo o oceano como mausoléu. Ao dormir, já na cama, ainda sentia o movimento das águas inquietas no corpo. Dormia ansioso para voltar a boiar no sol. Quando boiava, estava ansioso para voltar a dormir na sua ilusão da cama-maré.
Aos exatos sessentas anos, na segunda semana de agosto, o coração de Carlos deu a ultima batida durante o almoço. Tinha a certeza que um dia iria morrer no mar, mas naquele instante sentado na cadeira virado para a mesa, já sentia a presença da morte no corpo. Pode ainda afastar o prato e encostar o rosto sobre a madeira da mesa. Ao fechar os olhos não sentiu dor, só o toque gelado de uma água que tomou seu corpo e o fez flutuar. A sensação já era íntima de longos tempos e o sabor da água era salgado.
sexta-feira, 31 de julho de 2009
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